Apenas três meses e meio depois de irromper em cena, o golpe infligido ao mundo pelo coronavírus SARS-CoV-2 já supera de longe as piores previsões iniciais. O vírus causou
125.000 mortes, desatou uma crise econômica de proporções históricas e obriga os países a se adaptarem a um futuro que a Organização Mundial da Saúde (OMS) define como “a nova normalidade”, uma forma suave de reconhecer que levará muito tempo até que tudo volte a ser como antes.
E, apesar disso, a melhora dos indicadores em alguns países europeus leva seus governos a começarem a abrandar ou suspender algumas das medidas impostas para frear o avanço da epidemia e paliar os danos econômicos. Uma situação na qual a União Europeia busca evitar que se repitam os “atritos políticos” ocorridos entre os países no início da epidemia, segundo o itinerário traçado pela Comissão Europeia (o Poder Executivo da UE), a cujo rascunho ao qual o EL PAÍS teve acesso.
A comissão chefiada por Ursula von der Leyen propõe aos governos nacionais uma suspensão “gradual” e “coordenada” dos confinamentos impostos pela pandemia, em que os estados de emergência, em vigor em mais da metade dos países, seriam substituídos por medidas mais pontuais, mas igualmente restritivas, até que se encontre uma vacina ou um tratamento. O documento também defende um retorno compassado aos postos de trabalho, mantendo a “distância social” e o teletrabalho quando isso for possível.
A nova situação também obrigou a Organização Mundial da Saúde a atualizar sua estratégia contra a pandemia. Seu diretor-geral, Tedros Adhanom Ghebreyesus, destacou na terça-feira que enquanto “alguns países estão estudando quando podem suspender” as restrições impostas, outros avaliam “se devem introduzi-las e como”.
“Em ambos os casos, o objetivo deve ser proteger a saúde das pessoas, e [as medidas] devem ser guiadas pelo que sabemos do vírus. Todos estamos aprendendo e adaptando nossas estratégias às últimas evidências disponíveis”, afirmou Ghebreyesus em uma declaração telemática.
O organismo atualizou sua estratégia segundo seis critérios que os países devem cumprir antes de revogar as medidas de confinamento. O primeiro é que a transmissão do vírus “precisa estar controlada”. O segundo, que os sistemas sanitários tenham condições de “detectar, testar, isolar e tratar cada caso”, além de “rastrear seus contatos” de risco para adotar as medidas oportunas com eles. O terceiro ponto põe o foco em áreas-chaves na evolução da epidemia: os hospitais e asilos para idosos. “Os riscos de surtos nestas instalações devem ser minimizados”, argumentou.
Os outros três critérios destacados pela OMS são a adoção de “medidas de prevenção” em todos os espaços que as pessoas precisam continuar frequentando (que, segundo o país, podem ser postos de trabalho, escolas etc.), a gestão adequada dos casos importados e a formação da sociedade para que aprenda a conviver e reduzir os riscos frente ao vírus.
Em nível europeu, a Áustria e a Dinamarca adotaram um calendário para ir recuperando gradualmente a normalidade. Diante desses primeiros passos, a Comissão Europeia quer evitar que a saída do confinamento gere as mesmas disputas entre os países que ocorreram na sua imposição. Naquele momento, algumas nações (como a França e a Alemanha) adotaram restrições às exportações de máscaras; fronteiras foram fechadas, dificultando a circulação de equipamento sanitário; e alguns governos se recusaram a acolher doentes da Covid-19 provenientes de outros sócios da UE. “O respeito e a solidariedade entre Estados continua sendo essencial”, sustenta, em negrito, o rascunho da comunicação que será apresentada nesta quarta-feira numa entrevista coletiva por Von der Leyen e pelo presidente do Conselho Europeu, Charles Michel.
O Executivo comunitário adverte que a publicação desse itinerário não é um “sinal” para suspender os confinamentos, e sim que se trata de responder à pergunta de como as medidas serão relaxadas quando chegar o momento em cada país. De fato, o documento alerta que “o vírus continua circulando”, por isso “qualquer nível de abrandamento gradual do confinamento conduzirá inevitavelmente ao correspondente aumento de novos casos”. E isso exigirá acompanhar a evolução do coronavírus para abrir ou fechar a mão no retorno à rua, o que significa estar preparado para “ajustar e reintroduzir novas medidas se for necessário”. “Teremos que viver com o vírus até que se encontre uma vacina ou tratamento”, insiste.
A Comissão estabelece três critérios principais nos quais um país deve se basear para tomar a decisão de reiniciar a engrenagem econômica e social. O documento, elaborado com os conselhos do Centro Europeu para a Prevenção e Controle de Doenças (ECDC, na sigla em inglês), pede que as capitais se assegurem antes de que a “propagação da doença decresceu de forma significativa por um período de tempo sustentado”, que o sistema sanitário tem capacidade de assumi-lo em termos de acesso a medicamentos e equipamentos de proteção ou disponibilidade de leitos de UTI, e que há suficiente capacidade para detectar e controlar a propagação do vírus, incluindo testes em “grande escala”. Na dúvida, a comissão assinala que qualquer atuação deve se basear sempre na ciência e ter foco na saúde pública.
Uma vez adotada a decisão, Bruxelas recomenda que os países realizem ações graduais, em diversos passos e com tempo suficiente entre uma ação e outra para comprovar seus efeitos. A ideia, quando chegar o momento, é deixar para trás as “medidas gerais” para substitui-las por outras “específicas”, focadas em proteger a população de idade avançada, manter as pessoas diagnosticadas e com sintomas de Covid-19 em quarentena e substituir os estados de emergência vigentes na metade dos países da UE por intervenções concretas.
O reinício da economia também deverá ser feito, de acordo com o documento, de maneira progressiva, de modo que nem toda a população volte ao seu escritório e fábrica ao mesmo tempo. As concentrações de pessoas também deverão ser permitidas pouco a pouco, por exemplo, tentando fazer com que as escolas escalonem os horários do refeitório e fomentando as aulas online, que nas lojas exista uma capacidade máxima e que os bares limitem seus horários. A coordenação entre os países é fundamental à estratégia para abrir fronteiras, especialmente na primeira fase, que deve consistir em deixar sem efeito os controles atuais dentro da UE. O segundo passo será abrir a fronteira da União para permitir a entrada de não residentes no bloco comunitário.
Bruxelas se refere em seu documento à prevenção por parte da população. Os governos deverão continuar com campanhas para manter os hábitos de higiene adquiridos durante essa crise e as orientações sobre distância social. E, de acordo com o ECDC, recomenda o uso de máscaras, ainda que os “profissionais da saúde” devam ter sempre prioridade em seu uso.
A Comissão também recomenda que esse processo seja acompanhado com medidas como um sistema forte para compartilhar dados entre as regiões, controlar as “cadeias de infecção” com aplicativos móveis que respeitem a privacidade dos dados, expandindo os testes além dos hospitais, e reforçando os sistemas de saúde.
Joan Ramón Villalbí, da Sociedade Espanhola de Saúde Pública e Administração Sanitária (Sespas), considera tudo isso “razoável e acertado” levando em consideração que “a situação de partida nos diversos países é bem diferente, tanto pela incidência da epidemia como pelas medidas adotadas para seu controle”, afirma.
“É importante a prioridade que dá ao acompanhamento e controle dos casos infectados para evitar a propagação do vírus, o que se traduz em dar mais recursos ao sistema de saúde para fazer testes, acompanhamento de casos em domicílio…”, conclui Villalbí.
A Áustria foi o primeiro país a decidir fixar um calendário para levantar as medidas de confinamento impostas pela pandemia de Covid-19. Milhares de lojas voltaram a abrir as portas na terça-feira em todo o país, que até o momento registrou 384 mortos. É a primeira das medidas apresentadas pelo chanceler, o conservador Sebastian Kurz, ao Parlamento austríaco para “ressuscitar a economia passo a passo”. Por enquanto, só estão abertas lojas de até 400 metros quadrados, mas se prevê que sejam acompanhadas por centros comerciais, grandes superfícies e cabeleireiros a partir de 1º de maio. O Banco Central estima que cada semana de confinamento custou o equivalente a 0,53% de seu Produto Interno Bruto (PIB) atual. A Dinamarca também começará na quarta-feira a diminuir paulatinamente as medidas de contenção da pandemia. Inicialmente, escolas e creches poderão retomar suas atividades.
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