Em meados de março, a Comunidade de Madri cortou o cabo entre seus asilos e os hospitais. As famílias ficaram surpresas quando os cuidadores disseram que pediram ambulâncias para os idosos doentes com covid-19 e, do outro lado da linha, receberam respostas negativas. Mais tarde, eles descobriram o motivo da rejeição. Pelo menos desde 18 de março, o Ministério da Saúde desenvolveu protocolos, para uso em hospitais públicos da região, que excluíam pacientes de asilos com idosos de alta dependência ou com incapacidade. A verdade sobre esses documentos oficiais foi conhecida em detalhes no início deste mês.
Comunicações internas da Comunidade de Madri mostram que a presidenta dessa região espanhola, Isabel Díaz Ayuso, e seu secretário de Saúde, Enrique Ruiz Escudero, deram explicações incorretas sobre os protocolos de encaminhamento de idosos de asilos para hospitais durante a pandemia. Ayuso e Escudero alegaram que o Governo regional não deu ordem de excluir do atendimento hospitalar as pessoas com incapacidade ou dependência, e que um documento nesse sentido que chegou aos asilos era um rascunho enviado por engano. Mas, em vários e-mails obtidos pelo EL PAÍS, um alto funcionário da Secretaria de Saúde solicitou que esses protocolos assinados por ele fossem enviados às 475 residências da Comunidade de Madri.
Carlos Mur de Víu, diretor de coordenação socio-sanitária, enviou pelo menos quatro e-mails à Secretaria de Políticas Sociais, nos dias 18, 20, 24 e 25 de março, pedindo a distribuição dos protocolos de triagem. Esses documentos, todos assinados digitalmente por ele, foram a diretriz que hospitais e asilos seguiram para descartar a hospitalização de pessoas com incapacidade e idosos doentes com covid-19. Como explicam os documentos, a finalidade era evitar o colapso do sistema regional de saúde. Mas, segundo os filhos e netos de idosos que tiveram a hospitalização negada, o Governo regional sacrificou as vidas de seus familiares para esse fim.
Em meados de abril, quando a carga nos hospitais diminuiu, os idosos que vivem em asilos voltaram a ser admitidos de modo generalizado. Entre 8 de março e a sexta-feira passada, 5.986 idosos morreram em asilos com covid-19 ou seus sintomas, segundo a contagem mais recente da Secretaria de Políticas Sociais. De acordo com esses dados, 88% das mortes ocorreram até 17 de abril, no período em que os hospitais se recusaram a internar idosos procedentes de asilos.
Mur de Víu enviou esses e-mails à Secretaria de Políticas Sociais, encarregada de regulamentar e fiscalizar os asilos, assim como a outros altos funcionários da sua secretaria. O objetivo de suas mensagens, como afirma em dois e-mails obtidos por este jornal, era “racionalizar a abordagem de um dos principais focos da emergência que padecemos”.
“À espera da dotação adequada de profissionais e EPIs (equipamentos de proteção individual) em asilos, devemos ajudá-los no suprimento e nas transferências racionais aos hospitais”, diz em uma mensagem em 20 de março. O protocolo que Mur de Víu assinou naquela data contém cinco critérios de exclusão para pacientes com infecções respiratórias que vivam em qualquer asilo sócio-sanitário da região, incluídas pessoas com incapacidade física ou mental. Ficaram excluídos os pacientes que se encontrassem anteriormente em estado terminal e os dependentes segundo o índice de Barthel, uma escala de 0 a 100 que mede a autonomia das pessoas.
Após fortes críticas e um debate interno, a Secretaria de Saúde retificou a exclusão das pessoas com incapacidade de qualquer idade, que já não aparece nas últimas duas versões do protocolo. Também foi rebaixado o nível de autonomia do paciente no índice de Barthel, de 60 para 25.
Nesse e-mail do dia 20, e em outro de 24 de março, Mur de Víu solicita a seus colegas da Secretaria de Políticas Sociais que remetam os documentos aos asilos de Madri. Em ambos, alerta para contínua mudança dos critérios. “Tais recomendações vão sendo forçosamente atualizadas segundo a evolução da pandemia e dos recursos disponíveis”, observa.
A Comunidade anunciou em 13 de maio a destituição de Mur de Víu, pouco depois da demissão da diretora de Saúde Pública, Yolanda Fuentes, numa disputa interna sobre a conveniência de iniciar a desescalada do confinamento em Madri. O cargo de Mur de Víu é ocupado agora por Javier Martínez, um dos 22 geriatras que elaboraram os documentos. Martínez foi responsável por decidir o encaminhamento de idosos de mais de 40 asilos na localidade de Móstoles e arredores para o Hospital Rey Juan Carlos.
Mur de Víu não respondeu a várias tentativas de contato por parte deste jornal, e Martínez não quis dar declarações.
Ayuso e Escudero têm feito uma defesa contraditória dos protocolos, primeiro negando que existisse qualquer ordem, e depois mudando de versão para dizer que um dos documentos foi enviado por engano. Alegam que cada decisão de transferência foi tomada “de acordo com critérios clínicos”. Escudero disse neste sábado que o documento final não excluiu dependentes, o que não é verdade.
A Comunidade apontou que durante toda a pandemia 10.300 idosos foram transferidos de asilos para hospitais, acrescentando que o pico de transferências se deu em 6 de abril, com 206 encaminhamentos. Mas, segundo múltiplos depoimentos de familiares de mortos em asilos, as negativas foram quase generalizadas no período mais crítico da pandemia, entre meados de março e meados de abril. Alguns familiares e inclusive uma diretora de uma rede de asilos relataram que os pacientes chegaram a ser recusados unicamente com base na sua idade avançada.
A Sociedade Espanhola de Geriatria saiu neste domingo em defesa dos protocolos. Seu presidente, José Augusto García Navarro, disse em nota que o único culpado por essas mortes nos asilos é o coronavírus.
Como revelou este jornal na sexta-feira, o secretário de Políticas Sociais advertiu a Escudero em dois e-mails de 22 de março que os protocolos poderiam causar a morte indigna de idosos e levar a “graves consequências legais”.
A escala de fragilidade do protocolo regional para enfrentar o coronavírus em asilos de idosos
1. Em ótima forma. Pessoas que estão fortes, ativas, vigorosas e motivadas. São indivíduos que costumam praticar exercício regularmente. São os que estão em melhor forma para sua idade.
2. Em forma. Pessoas sem sintomas de doença ativa, mas que estão menos em forma que as da categoria 1. Costuma ocorrer que se exercitam ou estão muito ativas por temporadas, por exemplo, segundo a estação do ano.
3. Em bom estado. Pessoas que têm seus problemas médicos bem controlados, mas que não fazem atividade física regular além dos passeios habituais.
4. Vulneráveis. Embora não dependam de outros que lhes ajudem na vida diária, frequentemente os sintomas limitam suas atividades. Costumam se queixar de estarem lentos ou cansados durante o dia.
5. Levemente frágeis. Estas pessoas frequentemente têm uma perda de agilidade mais evidente e necessitam de ajuda para as atividades cotidianas importantes (economia, transporte, tarefas domésticas, mediação). É típico que a fragilidade leve vá dificultando que a pessoa saia sozinha para compras e passeios, faça a comida ou realize as tarefas do lar.
6. Moderadamente frágeis. Pessoas que precisam de ajuda para todas as atividades externas e para as tarefas domésticas. Em casa, costumam ter problemas com as escadas e necessitam de ajuda com o banho, podendo exigir também alguma assistência para se vestir (orientação e acompanhamento).
7. Com fragilidade grave. Dependem totalmente para o cuidado pessoal, seja qual for a causa (física ou cognitiva). Mesmo assim, parecem estáveis e sem risco de morte (nos seis meses seguintes, aproximadamente).
8. Com fragilidade muito grave. Totalmente dependentes, aproximam-se do final da vida. É comum que nem sequer se recuperem de afecções menores.
9. Doente terminal. Aproximam-se do final da vida. Esta categoria se aplica às pessoas com esperança de vida menor de seis meses e sem outros sinais de fragilidade.
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