Argentina vê pico da pandemia e endurece quarentena

O presidente Alberto Fernández posa com trabalhadores de uma fábrica de

autopeças na periferia de Buenos Aires, em 1º de maio.ESTEBAN COLLAZO / EL PAÍS

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Alberto Fernández gera confiança. Depois de quase seis meses na presidência da Argentina, preserva uma popularidade muito alta. Mas também mantém abertas quase todas as incógnitas. A gestão de duas crises muito complexas, a pandemia e a renegociação da dívida, ocupa a maior parte de seu tempo. Ainda não se sabe qual é seu projeto nem sua autêntica força dentro do peronismo. Nas próximas semanas, quando se chegar ao desconfinamento e se verificar, depois do default declarado na sexta-feira, se há acordo com os credores ou se Argentina fica definitivamente isolada do sistema financeiro internacional, Fernández deverá enfrentar a uma situação econômica calamitosa.

Ninguém jamais poderá questionar o rigor com que dirigiu o combate à pandemia. Sua prudência lhe valeu o respeito dos argentinos: 8 em cada 10 o apoiam. Com o pico de contágios já muito próximo, o número de vítimas mortais continua bastante baixo (433, segundo os dados da sexta-feira), e nenhum hospital se aproximou do colapso; na verdade, a maior parte dos leitos de UTI permanece vazia. Isso tem um preço. A cidade de Buenos Aires, diferentemente de outras províncias do país, terá sido submetida (se não houver novas prorrogações) a 80 dias de quarentena, mais do que nenhuma outra cidade do mundo. O fechamento da capital política e econômica acarreta um custo muito alto.

A presidência de Alberto Fernández esteve, desde o início, marcada por circunstâncias extraordinárias. O fato de a ex-presidenta Cristina Fernández de Kirchner o escolher como candidato, aceitando ficar com a vice-presidência, já foi incomum. O mesmo se aplica à sua taxativa vitória frente a Mauricio Macri, sem necessidade de segundo turno. A moratória virtual que Macri legou à Argentina provocou outra anomalia: Fernández manteve seu programa econômico em suspenso enquanto não houver acordo com os credores sobre uma reestruturação da dívida, optando também por governar sem uma lei orçamentária.

Então irrompeu a outra grande anomalia, a pandemia. Com o Congresso fechado (o Senado agora acaba de retomar suas sessões, estritamente virtuais), Fernández assumiu plenos poderes. A lei de emergência econômica, aprovada já em dezembro, e a emergência sanitária lhe permitem governar por decreto. Até agora, emitiu 23 decretos de necessidade e urgência (DNU). A Argentina entrou formalmente em default na sexta-feira, dia 22, quando deixou de pagar um vencimento de 503 milhões de dólares dos seus títulos de dívida, sem nenhum tipo de repercussão política. A ausência de vida parlamentar e a falta de um líder da oposição (Macri já não conta) deixam a Fernández uma margem aparentemente muito ampla.

Mas ninguém sabe com exatidão qual é essa margem de Alberto Fernández, porque seus limites são internos. Quem os dita são a vice-presidenta, Cristina Fernández de Kirchner, e seu filho, Máximo Kirchner, chefe da maioria na Câmara dos Deputados. O kirchnerismo mantém a base militante da qual o presidente depende, ocupa-se diretamente das questões judiciais (os diversos processos contra a ex-presidenta vão se desenrolando dia após dia) e marca terreno. Na Grande Buenos Aires, celeiro de votos que permitiu a Fernández ganhar comodamente a presidência, quem manda são os Kirchner e o governador Axel Kicillof.

Fernández, por exemplo, procurou manter uma cooperação estreita com o opositor Horacio Rodríguez Larreta, prefeito de Buenos Aires e um dos principais aspirantes a liderar as forças conservadoras e liberais nas eleições de 2023. Enquanto isso, o Governo provincial de Buenos Aires, nas mãos do kirchnerista Kicillof, fez de tudo para boicotar a relação entre Fernández e Larreta, acusando o prefeito de descuidar do atendimento à saúde nas villas miseria (favelas) e de transformar a capital em um grande foco de infecção.

Outro exemplo é o projeto de imposto extraordinário sobre as grandes fortunas, a ser pago supostamente uma só vez. Afetaria 12.000 pessoas com patrimônio superior a três milhões de dólares (16,6 milhões de reais) e deveria arrecadar três bilhões de pesos (240 milhões de reais), que se destinariam a bancar os custos da pandemia. O problema desse imposto é que se sobrepõe ao de bens pessoais, e a dupla tributação é inconstitucional. Máximo Kirchner empurrou o projeto até conseguir o aval do presidente ― e o obrigatório aplauso de Diego Armando Maradona, que se declarou “totalmente a favor do imposto sobre a riqueza”.

O kirchnerismo não deixa de emitir sinais. A deputada Fernanda Vallejo propõe que os créditos estatais concedidos às empresas para mantê-las vivas durante a pandemia se traduzam, em caso de não devolução, em ações empresariais. Ou seja, que o Estado passe a ser acionista dessas empresas, sejam elas grandes ou pequenas. A ideia ficou pairando no ar, como sinal de para onde aponta um setor da maioria governista. O presidente não se pronuncia. Dentro do próprio peronismo, é acusado de atuar mais como árbitro entre diferentes tendências do que como líder.

A gestão sanitária e o problema da dívida permitiram a Fernández manter um tom professoral, quase sempre comedido, acima da disputa política. Há poucas semanas, houve alguns panelaços minoritários contra a acumulação de poderes extraordinários, mas o medo da pandemia e o foco midiático nas negociações com os credores garantiram um autêntico período de graça ao presidente.

Esse período de consenso popular terminará com a quarentena e o acordo ou a ruptura com os credores da dívida argentina: Fernández terá que enfrentar então uma realidade econômica sinistra. Estima-se que a recessão comerá neste ano 10% do PIB argentino, que já vem diminuindo desde 2018. Quase metade da população terá caído na pobreza. E o peso continuará se desvalorizando frente ao dólar, como não deixou de fazer nos últimos três anos, apesar dos controles cambiais cada vez mais rigorosos.

De certo modo, será então que a presidência de Alberto Fernández realmente começará. E as coisas não serão mais fáceis do que agora. Talvez sejam inclusive mais difíceis.

A sombra permanente de Cristina Kirchner

Cristina Fernández de Kirchner está sempre lá. Ela conseguiu para seu grupo político a área da Justiça, onde pode influenciar o desenrolar dos processos que a afetam, e a área da política assistencial, através do controle da Administração Nacional da Seguridade Social. Tem seu filho Máximo como chefe da maioria parlamentar, seu fiel ex-ministro de Economia, Axel Kicillof, como governador da maior província do país, Buenos Aires, colocou Carlos Zannini (processado com ela por suposto acobertamento) na Procuradoria do Tesouro, e agora parece ter voltado seu olhar para o campo energético. O kirchnerista Federico Bernal, chefe da Agência Nacional Reguladora de Gás, começou a adotar iniciativas à margem de Matías Kulfas, ministro do Desenvolvimento Produtivo, oficialmente o responsável pela área e um dos principais colaboradores de Alberto Fernández.

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